Neste mês o Canal Brasil exibiu um documentário-despedida com o Guará. A câmera acompanhou o velório e o enterro deste incrível ator que morreu de vodka, mas não morreu de tédio. Coincidências sublimes neste momento do meu processo de criação.
Quando conheci Helena Ignês (no FAM em que o Signo do Caos foi exibido), ela me fez uma pergunta direta: "Tu conhece o Guará?". Desconversei e falei dos dois ou três filmes que tinha visto com ele. "Ele é um ator fantástico!", ela me disse. O tempo passou, o Guará morreu . Chafurdando meus livros, encontrei esta entrevista que o Luiz Nazário fez com ele em 1980. Decidi postá-la no blog da Vinil. Obrigado Breno pela paciência em transcrevê-la.
A REPRESENTAÇÃO SEGUNDO GUARÁ
Luiz Nazário – Em A NOITE, Antonioni fez uma experiência com Jeanne Moreau: terminadas as suas cenas, continuava a rodar o filme, registrando os momentos em que a atriz, deixando de ser personagem, não era ainda a pessoa. Como um ator vive estes momentos? Que relação há entre a pessoa, a personagem e este ser intermediário?
Guará – Baseado na minha experiência, não existe este ser intermediário. O que existe quando se termina um plano é a crítica do que se fez. Uma crítica quase técnica. O ser intermediário não passa de uma sofisticação de intelectuais europeus. Esta frase não tem nada de pejorativo, pois amo a sofisticação, a Europa em geral e a cultura italiana e francesa em particular. Agora, a relação entre a pessoa (ator/atriz) e a personagem é outro papo. Um papo nada sutil. É quase violento. A mim a personagem me possui inteiramente, com a força que o demônio possui Rosário, no filme que escrevi para o Neville D’Almeida, Piranhas do asfalto.
L.N. – Quando a personagem o possui, como um demônio, é para que você se esqueça do seu corpo? Representar é uma forma de não assumir o corpo através de sua instrumentalização?
G. – Meu corpo nunca está em jogo, a não ser como manifestação sensual da personagem. Ao mesmo tempo, na imagem, o corpo é a única coisa que domino, isto é, que não me causa surpresa quando o vejo filmado, principalmente se ele é decomposto, quer dizer: close-up das mãos, da sola dos pés, dos órgãos sexuais, dos olhos, dos lábios fechados entre os quais surge a língua úmida, etc. Enfim, o meu corpo está quase sempre assumido, não penso mais nele, mas não o esqueço: ele já não me pertence, pertence à personagem. Fui chamado pelo meu amigo Gilberto Loureiro para fazer um corcunda no seu próximo filme. Aí, sim, meu corpo vai ser literalmente instrumentalizado – é uma caracterização. Estou pensando em algo assim como Charles Laughton em O corcunda de Notre-Dame. O corpo se transforma numa obsessão... mas não se pode perder o humor, como Charles, naquele plano memorável dizendo: “I’m not a man, I’m not a beast”.
L.N. – Qual a sua formação de ator?
G. – Minha formação de ator é a forma-ação. A forma: o diretor, o diretor de fotografia, o figurinista, o cenógrafo, o script, a equipe enfim. À palavra “ação” me transformo em ator. À palavra “corta” volto a ser Guará (personagem/pessoa/ator).
L.N. – Quais seus atores preferidos?
G. – Richard Dreyfus, Zbigniew Cybulski, Gerard Phillipe e todos aqueles monstros sagrados do velho cinema americano: Bette Davis, Bogart, etc. E também qualquer ator dirigido por Hitchcock, até mesmo Doris Day em O homem que sabia demais. E Edgar Buchanans, o juiz de Guns in the afternoon, e também Warren Oates. De qualquer maneira, atualmente estou parado na de Richard Dreyfus.
L.N. – Quando veio em você a noção de representar?
G. – Creio que com a primeira mentira. Quando se mente preciso elaborar, iludir, ser uma outra pessoa sem renunciar ao que você é. Depois, socialmente, a grande mentira, você tem que representar sempre.
L.N. – A representação nasce na família – no teatro do pai e da mãe – ou num desejo constante de ser outro?
G. – O teatro do pai e da mão, como casa de espetáculo, tendo eles como espectadores, é realmente muito interessante e incentivador para o jovem ator (o filho), mas sendo eles o espetáculo em si é mais uma novela de Janete Clair do que teatro. Por outro lado, os pais, como diretores, são muito ditatoriais. O desejo constante de ser outro... isto não existe. Eu não desejo ser outro quando represento, eu quero ser eu mesmo enquanto outra pessoa. Quer dizer, eu quero me colocar no interior de outro ser (personagem) e o transformar para o bem ou para o mal.
L.N. – Fale das suas decepções, no cinema, de ver a sua imagem apreendida de uma forma diversa daquela que havia imaginado, da diferença que existe entre o sonho da representação e a sua realidade, da montagem enfim, que destrói... o quê?
G. – O cinema nunca me decepcionou como criação. Existe a decepção quanto às dimensões. Você sabe, o cinema tem a limitação das duas dimensões. Por outro lado, você idealiza, digamos, um plano que fez e, quando o vê, depois de um tempo, o tempo da revelação, revelação do negativo e revelação no sentido amplo, você já amadureceu mais um pouco e pensa: “Isso poderia ser feito assim... de uma maneira mais perfeita”, ou “está tudo errado, não é nada disso”. Não se pode retocar, como na pintura, ou jogar fora ou rasgar, como se faz com uma fotografia. A perfeita representação ou a representação perfeita só existe em toda a sua sutileza na vida real, a cronologia é a montadora ideal. A montagem no cinema é arbitrária. Destrói a ordem interna do ator.
1980
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