sexta-feira, março 24, 2006

Dois Palhaços

Vida E Morte de Peter Sellers
Stephen Hopkins, 2004

Tem filmes que caem nas nossas vistas por acaso e mudam coisas, tornam-se experiências sutis e cativantes, sem fazer alarde. Não têm diretor famoso, não é nem cult nem blockbuster, é só sinceramente um filme. Esse foi o caso de Vida e Morte de Peter Sellers, filme feito pra BBC de Londres, que , óbvio, conta a vida ( e a morte) do célebre ator inglês.

Tem um personagem inebriante. O hilário Inspetor Clouseau. O ator esplendoroso de Dr. Fantástico. O homem vazio de Muito Além do Jardim. Peter Sellers era um ator incorporado, um gênio infantil de personalidade estilhaçada, receptáculo vazio onde os personagens se alojam e respiram. Um atleta afetivo e esquizofrênico. Um palhaço cruel que chora por dentro e todo o tempo dói. Performer apaixonado incapaz de amar.

O filme é todo esse abismo que é o personagem.

Tem Geoffrey Rush, virtuoso, matematicamente similar e poéticamente vivo na pele-alma de Sellers.

Tem a condução criativa que mistura biografia com sequências de fantasia, lirismo e jogos metalinguísticos.

No dia em que sofre 8 paradas cardíacas consecutivas, Sellers tem uma experiência de quase-morte. Na cama do hospital agoniza. Agora está no cenário de Dr. Fantástico. Seus personagens surgem ao redor numa espécie de procissão, falam sem parar com vozes muito diferentes, se comportam. Vão fechando um círculo perturbador. Sellers atordoado por tantos outros que são ele mesmo. Revela-se que ele está sentado na ponta de um foguete que rompe o chão do cenário futurista e voa, carregando uma bomba. Explosão. No hospital Sellers acorda decidido a encontrar-se.

Basta.

O Homem das Novidades
Edward Sedgwick / Buster Keaton, 1928

Fui ao cinema, lugar onde se deve ver clássicos. Nesta obra-prima Buster Keaton é um fotógrafo de rua que apaixona-se pela funcionária de um Cine-jornal e vira cinegrafista. Muito já li sobre o que o filme fala de cinema e realidade, de toda reflexibilidade e de todas as asssociações poéticas e semióticas em The cameraman.

Eu queria falar do palhaço.

De seu olhar sem fundo,
no fundo solidão.

Do seu corpo ( in) crível.
Máquina de carne e riso.

De sua beleza estranha.
Ambígua.

Daquela gargalhada que não vi no seu rosto branco.

Do que ele tem de criança inocente e safado sem-vergonha.

Existe algo de andrógino em Buster Keaton,

como num anjo.

domingo, março 12, 2006

HAPPY BIRTHDAY MR. VINIL


Faz 1 ano.
Parabéns Vinil Filmes.
Em breve a festa, com Isto Não É Um Filme.

domingo, março 05, 2006

Naquela noite sonhei filme

Rooms by the Sea
Edward Hopper1951

Sonhei um filme que eu não vi. Era uma história de movimentos sutis, subterrâneos. Tinha cores de cigarro nos dedos, algum celulóide amanhecido. Um personagem quase transparente de tão puro e uma câmera que ia dentro, perfurava-lhe a fina camada de pele translúcida e enquadrava um vazio tocante, que causava vertigem. Uma trilha que parecia silêncio completava a caminhada do personagem, por ruas vazias, estradas tortas, vielas estreitas e desertas de cidade grande. O céu era negro e azul como noite americana, tão real e tão falso. Havia algo de majestoso naquele andar derrotado. Príncipe sem trono, cão sem dono, ator sem ribalta.Um perfume de solidão saía da tela gigante, avançava sobre os olhares da platéia, atenta e embargada. O filme passava sem tempo, em saltos apreendidos num corte perfeito, num ritmo que era a vida. E então o homem era velho e roto, os olhos dormentes olhavam a água turva sob a ponte. Talvez lembrasse dos dias de sol quente, nos tempo em que havia vida naquelas águas antigas, fracassadas. Eram tristes esses olhos, assim a câmera os registrava, ainda que guardassem uma certa alegria escondida, de quem viveu alimentando pequenas glórias que eram nada, que o mundo não viu. Um longo plano distante destacava a pequenez do homem, frente ao mundo que de tão grande, não cabe. Amanhecia e a luz entrava seca, cortando o quadro em formas retas, claro-escuro por entre prédios vazios da cidade que dorme. Agora uma mulher cantava uma canção que era um adeus enquanto o homem vazio aprumava-se no peitoril, as pernas sozinhas balançando sobre o abismo úmido, agora azul. Planos detalhes mostravam o homem despedaçado, mas cada recorte continha o mundo todo, tão repletos eram de pulsação. As mulheres na platéia choravam o inevitável. Os homens sustentavam seu garbo, escondendo delicadezas. Todos eram um no ritual escuro e mítico e moderno da exibição. Respirações suspensas na queda absurda. Tudo era luz. Até o som seco.
Blecaute sem fim.

Quando o diretor gritar corta, quero estar pronto pro recomeço.