domingo, março 05, 2006

Naquela noite sonhei filme

Rooms by the Sea
Edward Hopper1951

Sonhei um filme que eu não vi. Era uma história de movimentos sutis, subterrâneos. Tinha cores de cigarro nos dedos, algum celulóide amanhecido. Um personagem quase transparente de tão puro e uma câmera que ia dentro, perfurava-lhe a fina camada de pele translúcida e enquadrava um vazio tocante, que causava vertigem. Uma trilha que parecia silêncio completava a caminhada do personagem, por ruas vazias, estradas tortas, vielas estreitas e desertas de cidade grande. O céu era negro e azul como noite americana, tão real e tão falso. Havia algo de majestoso naquele andar derrotado. Príncipe sem trono, cão sem dono, ator sem ribalta.Um perfume de solidão saía da tela gigante, avançava sobre os olhares da platéia, atenta e embargada. O filme passava sem tempo, em saltos apreendidos num corte perfeito, num ritmo que era a vida. E então o homem era velho e roto, os olhos dormentes olhavam a água turva sob a ponte. Talvez lembrasse dos dias de sol quente, nos tempo em que havia vida naquelas águas antigas, fracassadas. Eram tristes esses olhos, assim a câmera os registrava, ainda que guardassem uma certa alegria escondida, de quem viveu alimentando pequenas glórias que eram nada, que o mundo não viu. Um longo plano distante destacava a pequenez do homem, frente ao mundo que de tão grande, não cabe. Amanhecia e a luz entrava seca, cortando o quadro em formas retas, claro-escuro por entre prédios vazios da cidade que dorme. Agora uma mulher cantava uma canção que era um adeus enquanto o homem vazio aprumava-se no peitoril, as pernas sozinhas balançando sobre o abismo úmido, agora azul. Planos detalhes mostravam o homem despedaçado, mas cada recorte continha o mundo todo, tão repletos eram de pulsação. As mulheres na platéia choravam o inevitável. Os homens sustentavam seu garbo, escondendo delicadezas. Todos eram um no ritual escuro e mítico e moderno da exibição. Respirações suspensas na queda absurda. Tudo era luz. Até o som seco.
Blecaute sem fim.

Quando o diretor gritar corta, quero estar pronto pro recomeço.

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