quinta-feira, julho 16, 2009

Ilha 70


Este texto do Caio foi o ponto de partida para o novo projeto da Vinil. Em breve mais notícias!

PEQUENAS E GRANDES ESPERANÇAS

Pensando (ou lembrando) bem, não foram tão verdes assim. A memória tem sempre essa tendência otimista de filtrar as lembranças más para deixar só o verde, o vivo. Antigamente, sempre era melhor, ainda que não fosse. Talvez porque já esteja, lá, tudo solucionado e a gente possa se ver, no tempo, como quem vê uma personagem num livro ou filme: aconteça o que acontecer, há um fim definido, predeterminado. Essa espécie de improvisação do agora, do que está sendo moldado, causa muito mais angústia. Não temos, como no samba, a menor idéia de como será o amanhã. Encontrar um único adjetivo para os anos 70 não é tão fácil assim. Facílima é a expressão “anos 70”, como se pudéssemos espremer aqueles dez anos em um único significado, ignorando as nuances todas. Os dias em que nada parecia acontecer e não estávamos dentro dos tais anos 70: por trás das circunstâncias históricas, nomes e datas, estávamos dentro de um tempo que ainda não ganhara uma forma exata. Se foram duros? Foram, foram duros. Mas foram também cheios de sonhos e encontros e pequenas e grandes esperanças. Foram anos em que não se podia viver muito para fora: a repressão política nos empurrava para dentro. Nesse movimento, havia duas opções principais e radicais: ou você caía de cabeça nas drogas ou mergulhava na clandestinidade política. O que ligava os dois comportamentos era uma vontade poderosa de mudar o País e o planeta, fosse através do ácido lisérgico nas caixas d’água das cidades, fosse pela revolução do proletariado. Verde mesmo, verde clarinho, desse quase água, era ter perto dos vinte anos e não saber que se sabia muito pouco das ditas coisas da vida. Justamente por isso, enfrentar de peito aberto todos os riscos de dentro e de fora da própria cabeça, esgueirando-se entre paranóias quase sempre reais. Não tínhamos ainda essas marcas deixadas pelos que desistiram, se mataram, foram presos, torturados, assassinados, enlouqueceram – enquanto dentro de nós pequenas partes iam também desistindo, se matando, sendo presas, torturadas, assassinadas, enlouquecendo. Não ter essas marcas, era verde. Verde era ainda estar inteiro e pronto para luta, embora não parecesse. É por isso que, quando a barra pesa, gosto de pensar que dentro do agora talvez exista também um verde qualquer, que não estamos vendo. Só veremos quem sabe quando pudermos aprisionar estes anos num pacotinho, carimbá-lo e colocar na prateleira da História com o título de “anos 80”. Ficarão mais leves, assim batizados??

Caio Fernando Abreu

Crônica publicada no jornal
Zero Hora,
de Porto Alegre, no dia 4 de abril de 1984.

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